Música para o Espírito

sábado, 22 de outubro de 2016

Capital Comunicacional e Discurso do Poder

CAPITAL COMUNICACIONAL E DISCURSO DO PODER
Lisandro Braga
*Artigo publicado originalmente em Revista Enfrentamento, ano 10, número 17.

O conceito capital comunicacional, de autoria de Nildo Viana (2007c), é parte da tentativa desse autor em apresentar uma teoria do modo de comunicação na sociedade capitalista, mas que ainda se encontra inconclusa. Porém, tal conceito já apresenta grandes avanços na compreensão sobre tal modo de comunicação, que supera os construtos predominantes nas principais discussões sobre o tema: comunicação de massas, cultura de massas, indústria cultural etc.
Essa proposta está contida no seu capítulo Para além da crítica dos meios de comunicação (2007c), na obra Indústria cultural e cultura mercantil (2007), no qual resgataremos seus principais argumentos e suas contribuições para pensarmos os interesses de classe por detrás do capital comunicacional, excepcionalmente na sua forma jornalística impressa (e também digital), a relação com os discursos e correntes de opinião que ela produz (seleciona, recorta, destaca, oculta etc.) e veicula, principalmente em contextos de maior radicalidade da luta de classes.
A busca pela compreensão da realidade concreta exige um conceito que expresse adequadamente essa realidade, pois o conceito depende da realidade que busca expressar e não o contrário, visto que é a realidade social que o torna necessário e se expressa através dele. Portanto, se a realidade concreta é multifacetada e complexa, o conceito que busca expressá-la também deve ser: “se o conceito é expressão da realidade, as suas características são as mesmas desta” (VIANA, 2007b). Partindo dessa constatação, o autor contesta os construtos (sistematização de uma noção falsa da realidade), meios de comunicação de massa, cultura de massas, indústria cultural etc., pois esses carecem de um referencial teórico-metodológico mais apropriado e, por conseguinte, obscurecem mais do que expressam a realidade. Para o autor,
as concepções de indústria cultural, meios de comunicação de massa, cultura de massas, entre outras, padecem da falta de uma base metodológica e conceitual adequada. Apesar da influência do marxismo em muitas elaborações sobre a indústria cultural, as análises, na verdade, não utilizam o método dialético e acabam caindo em posições antidialéticas, mesmo utilizando a palavra dialética ou dizendo adotar tal método. Por outro lado, e mais grave, uma vez produzidas tais concepções, elas acabam se tornando referências obrigatórias e criam uma armadura linguística que dificulta o avanço intelectual sobre o fenômeno da comunicação na sociedade capitalista. O problema da linguagem é fundamental, pois a consciência a usa como elemento mediador para se desenvolver, e, quando a linguagem é coisificada, isto acaba efetuando uma coisificação da consciência. Tendo em vista que vivemos numa sociedade na qual a consciência coisificada predomina, então ela e a linguagem coisificada se reforça mutuamente (VIANA, 2007c, p. 08).
Seguindo sua análise, as teses da sociedade de massas e da cultura de massas, no qual os meios de comunicação (de massa) se inserem, são ideológicas. Primeiramente, o foco fundamental da discussão sobre a comunicação não deve residir nos meios de comunicação, mas sim no modo de comunicação, pois do contrário a mesma focaria fundamentalmente na questão tecnológica ou industrial. No fundo, a ideia de meios de comunicação remete aos “grandes meios de comunicação” (TV, rádio, impressa) e esses não são homogêneos como nos faz entender tais teses. Pelo contrário, existe uma heterogeneidade de meios (empresas oligopólicas, pequenas empresas etc.), que funcionam de formas distintas, mas que, no entanto, também possuem semelhanças entre eles. A questão é que a semelhanças não se encontram nos meios, mas sim no modo de comunicação instituído na sociedade capitalista.
A outra homogeneização que não corresponde com a realidade é a promovida pelo construto “massas”. Esse tal como o construto “povo” é uma abstração metafísica que “a tudo responde sem nada responder”, “aquela palavra mágica, refrão a que todos se apegam, fórmula para todos os problemas, sésamo para todas as portas, não tem limitações, contornos, características” (SODRÉ apud VIANA, 2007c, p. 10). Esse construto ofusca a realidade concreta, pois restringe a heterogeneidade da população, que é dividida em classes sociais antagônicas, com interesses distintos e em oposição umas às outras, à “massa”. No fundo, oculta que o modo de comunicação é capitalista e, portanto, interessado na reprodução das relações de exploração e na sociabilidade que nela se fundamenta. A obtenção de êxito nessa tarefa exige a posse dos meios de dominação (obscurecimento) comunicacional, quer dizer, a posse do capital comunicacional.
Nesse aspecto, a análise de Adorno e Horkheimer contêm avanços e limites. Avança no sentido de apresentar as insuficiências e o caráter ideológico do termo meios de comunicação de massa, mas se limita a isso, pois não consegue ultrapassar as barreiras da linguagem fetichizada, se aprisionando em outro construto: indústria cultural. Sendo assim como os outros, esse construto também precisa ser ultrapassado “efetivamente, não apenas através da crítica, mas também através da explicação do fenômeno que tal ideologia oculta”. E esse é o propósito fundamental de Viana (2007c), qual seja, apresentar um conceito que dê conta dessa realidade concreta e que ultrapasse os limites ideológicos desses construtos.
Apesar do avanço da explicação dos autores frankfurteanos em relação às teses dos meios de comunicação de massa, apesar dos seus momentos de verdade, o construto indústria cultural apresenta uma grande limitação explicativa e isso se deve, significativamente, aos limites da compreensão, explicação e crítica ao capitalismo, fornecida pela Escola de Frankfurt. A falta do uso do método dialético, consequentemente a ausência de uma teoria ampla e profunda do capitalismo, bem como a falta da perspectiva proletária[1] permitiu a esses autores apresentarem uma concepção não dialética do modo de comunicação capitalista (a indústria cultural) e, portanto, sem a percepção das contradições, da luta de classes e do potencial revolucionário do proletariado. Afinal de contas, alguns autores dessa escola estavam enfeitiçados pela crença da integração do proletariado ao capitalismo, tal como defendia Marcuse e outros. A não percepção da totalidade capitalista, da existência de um bloco capitalista subordinado, do imperialismo que lhe dá vida e a temporária estabilidade adquirida no bloco imperialista graças à sua superexploração etc. aponta para a principal fragilidade dessa compreensão, ou seja, a não percepção de que a estabilidade era relativa, temporária e não eterna.
Na verdade, a realidade concreta que o construto indústria cultural pretende sem grandes êxitos explicar, tem a ver com as características do emergente regime de acumulação conjugado, sua dinâmica etc. A acumulação conjugada (1945-1980), nasce do caminho aberto pela segunda guerra mundial, pois com a destruição massivas das forças produtivas criou-se uma situação generalizada extremamente favorável para a acumulação de capital, em um contexto de grande capacidade tecnológica/produtiva existente. No entanto, como todo regime de acumulação, o conjugado precisou lidar com suas contradições e para isso, como vimos anteriormente, buscou “integrar a classe operária ao capitalismo”, isto é, promover melhores condições para o consumo dessa classe social, aumentando a produção dos meios de consumo, desviando parte dos meios de produção para ele (VIANA, 1996; 2003).
Aqueles que denunciaram a integração da classe operária no capitalismo devido ao aumento do seu nível de renda viram apenas um lado da questão. Na verdade, tal integração ocorreu graças à instauração de um modo de vida capitalista também no interior da classe operária. O que explica isso é o desenvolvimento capitalista. Este é um desenvolvimento contraditório: ao mesmo tempo precisa “revolucionar” constantemente os meios de produção, ele necessita barrar este desenvolvimento [...] A partir das crises do capitalismo mundial que provocaram as duas guerras mundiais, a classe dominante buscou superar esta tendência através da intervenção estatal na produção-distribuição-circulação, da expansão transnacional e da expansão da produção dos meios de consumo e do setor de serviços (VIANA, 1996, p. 14).
Nesse processo de produção de meios de consumo e de serviços, duas características são fundamentalmente marcantes: a burocratização e mercantilização da vida[2]. Aqui, mencionaremos apenas o processo de mercantilização. A acumulação de capital ampliada exige a transformação de tudo em mercadoria e a produção de meios de consumo se apresenta como uma estratégia para combater a tendência declinante da taxa de lucro, pois cria e fortalece certos setores do capital. É nesse contexto, e visando tais fins, que o capitalismo oligopolista transnacional produz diversas necessidades de consumo, tais como os aparelhos domésticos (televisão, rádio etc.),
bens descartáveis e de obsolescência planejada, assim como é instaurada uma nova moral: em que, segundo Baudrillard: despesa, prazer e não-cálculo substituem os valores antigos de poupança, trabalho e patrimônio. Os indivíduos são compelidos a consumir como efetivação de seu dever de cidadãos. É o que o referido autor chamou de Fun-morality: “imperativo de se divertir e de explorar tudo a fundo todas as possibilidades de se fazer vibrar, gozar ou gratificar” [...] (ÓRIO, 2016, p. 08-09).
A transformação de tudo em mercadoria se expande, fortalecendo setores já existentes (capital comercial e outros) e dando origem a “novos” nichos de acumulação, tais como o de serviço (capital dos serviços) e o comunicacional (capital comunicacional). Por conseguinte,
o capital comunicacional é aquele voltado para o investimento capitalista nas empresas de comunicação, cada vez mais oligopolistas. É um novo setor do capital, que já existia de forma embrionária no regime de acumulação anterior, mas que se torna mais forte e vai produzindo um processo de concentração e centralização crescente. Assim, ao invés de indústria, um termo relativamente neutro e pouco preciso, trata-se de capital, que expressa relações sociais de exploração e acumulação, em contraposição a um mero processo de produção não definido linguisticamente, tal como indústria ou empresa. É o domínio do capital nas empresas de comunicação, formando empresas capitalistas de comunicação que se tornam, com o passar do tempo, oligopolistas. O capital comunicacional não produz cultura, arte. Ele produz mensagens, divulgação, comunicação das obras artísticas, culturais ou de informação. Os seus funcionários são assalariados, os demais, que não possuem vínculo empregatício são remunerados através de direitos autorais, pagamento por prestação de serviços, etc. [...] Assim, o conceito de indústria cultural é impreciso e eufemístico, enquanto que o conceito de capital comunicacional é preciso e nem um pouco eufemístico: expressa a dominação capitalista no processo de comunicação via meios tecnológicos (VIANA, 2007c, p. 14 – itálicos nossos).
Como todo capital, o comunicacional tende a se expandir de forma concentrada e centralizada, formando grandes oligopólios comunicacionais, concentrado nas mãos de um pequeno grupo, que passa a controlar um poderosíssimo meio de dominação social: a dominação comunicacional. Com isso, o caráter autoritário e vertical da comunicação, presente em toda sociedade fundada na exploração de uma classe social sobre outra, se amplia significativamente, constituindo, dessa maneira, o modo dominante e autoritário de comunicação capitalista. Por serem empresas capitalistas de comunicação produzem mercadorias (mensagens, informação, discursos etc.) que visam o lucro. A comunicação torna-se, além de autoritária e vertical, mercantil e lucrativa.
O capital comunicacional, através das empresas capitalistas de comunicação, buscam dois objetivos fundamentais. O primeiro consiste na busca pelo lucro, tanto o fornecido pela produção da mercadoria jornal quanto aquele oriundo da propaganda comercial que ele veicula etc.; o segundo interesse caracteriza-se pela busca de melhores condições ideologêmicas que garantam a regularização da sociabilidade (modo de vida) burguesa. Logo,
todo este processo reproduz os interesses da classe dominante. A indústria cultural produz uma padronização e manipulação da cultura, reproduzindo a dinâmica de qualquer outra indústria capitalista, a busca do lucro, mas também reproduzindo as ideias que servem para sua própria perpetuação e legitimação e, por extensão, a sociedade capitalista como um todo (VIANA, 2007c, p. 23).
Nesse sentido, o capital comunicacional não apenas se utiliza da alta tecnologia dos meios de emissão de comunicação/informação, como o faz de determinado modo. Para garantir a regularização das relações sociais existentes, o conteúdo discursivo jornalístico deve ser ideologêmico e axiológico, deve apontar para a naturalização da realidade e para a reprodução das representações cotidianas e ilusórias, que expressam predominantemente o imaginário social, bem como para a formação de uma consciência coisificada e não contestadora.  Em síntese, o conteúdo discursivo jornalístico não deve apontar para além da aparência dos fenômenos sociais, tal como a perspectiva da burguesia comunicacional não pode ultrapassar os limites da sociabilidade burguesa (VIANA, 2013; 2007d; 2008a).
O discurso jornalístico tem como propósito fundamental realizar a propaganda, isso é a transmissão de determinadas ideias ou acontecimentos e/ou determinadas ideias sobre determinados acontecimentos. Existem, basicamente, duas modalidades de propaganda, a propaganda comercial e a propaganda ideologêmica. Essa última é a que nos interessa. A complexidade e maior sistematização exigida para a produção e propagação de uma ideologia são incompatíveis com o formato discursivo exigido pelo jornalismo (mesmo impresso). Esse precisa de uma linguagem simples, objetiva e de fácil acesso ao grande público, no entanto a qualidade dessa linguagem deve ser ideologêmica, quer dizer sua representação sobre os fenômenos sociais deve se fundamentar em fragmentos de ideologia (sistema de pensamento ilusório), numa representação cotidiana[3] da realidade, marcada pela naturalização das relações sociais e pelos padrões dominantes dos valores na sociedade (axiologia[4]). O discurso jornalístico, portanto, equivale a uma das formas em que o capital comunicacional transmite sua perspectiva, que é determinada pelo bloco dominante[5]. Esse, por sua vez, conta com seus ideólogos e aparatos institucionais (estado, partidos políticos etc.) para produzir uma concepção hegemônica, uma corrente de opinião predominante na sociedade, que é reproduzida pelo capital comunicacional, através dos discursos que ele veicula. As correntes de opinião são entendidas por nós em sua dinamicidade, tendo seu período de nascimento, difusão e perecimento; são relativas a acontecimentos, processos sociais e políticos, questões polêmicas, produções culturais e ideológicas, demandas sociais e também, como veremos, relativas à contestação social. “Elas influenciam a formação de opiniões momentâneas, simuladas e resistentes em determinada conjuntura e por isso são conjunturais” (VIANA, 2015b, p. 12).
Por último, para concluirmos, nos resta apresentar a compreensão teórica que temos sobre o discurso e que utilizaremos na fundamentação desse trabalho. Afinal, o que é um discurso? Para respondermos essa questão é necessário, primeiramente, realizarmos uma discussão sobre a linguagem, isto é sobre o meio de manifestação do discurso. Sendo assim, o que é a linguagem? A busca por respostas a essas duas questões compõe, no fundo, parte da procura por respostas a uma questão mais ampla, isto é, a relação entre discurso e poder. Diversos teóricos se debruçaram sobre essa questão, no entanto, nem todas as respostas foram satisfatórias, visto que algumas apontaram para uma concepção metafísica, tanto de poder (como relação), quanto de discurso (formação discursiva) (FOUCAULT, 2012; 2012a). Sendo assim, buscaremos respostas a essas questões partindo de uma concepção dialética de linguagem e poder.
Ao partirmos dessa perspectiva, evidenciamos nitidamente a existência de uma relação íntima entre a linguagem e as relações sociais de determinada sociedade dividida em classes sociais. Em A ideologia alemã (1991), Marx e Engels já apontavam elementos que levam a essa compreensão:
a produção de ideias, de representações, da consciência, de início, diretamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material dos homens, como a linguagem da vida real. O representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens, aparecem aqui como emanação direta de seu comportamento material. O mesmo ocorre com a produção espiritual tal como aparece na linguagem da política, das leis, da moral, da religião, da metafísica etc. de um povo. Os homens são os produtores de suas representações, ideias etc., mas os homens reais e ativos, os homens que realizam (die wirklichen, wirkenden Menschen – o ser humano, ação humana), tal como acham condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e do intercâmbio que a ele corresponde até às suas formações mais amplas. A consciência jamais pode ser outra coisa do que o ser consciente, e o ser dos homens é o seu processo de vida real. E se em toda ideologia os homens aparecem de cabeça para baixo como numa Câmera obscura, é porque este fenômeno deriva do seu processo histórico de vida, da mesma maneira que a inversão dos objetos na retina deriva do seu processo diretamente físico de vida [...] não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou se representam, e também não dos homens narrados, pensados, imaginados, representados, para daí se chegar aos homens em carne e osso; parte-se dos homens realmente ativos, e com base no seu processo real de vida apresenta-se também o desenvolvimento dos reflexos e ecos ideológicos deste processo de vida [...] A moral, a religião, a metafísica e a restante ideologia, e as formas da consciência que lhes correspondem, não conservam assim por mais tempo a aparência de autonomia. Não tem história, não tem desenvolvimento, são os homens que desenvolvem a sua produção material e o seu intercâmbio material que, ao mudarem esta sua realidade, mudam também o seu pensamento e os produtos do seu pensamento. Não é a consciência que determina a vida, é a vida que determina a consciência (MARX e ENGELS, 1991, p. 36-37).
Nessa passagem, Marx e Engels (1991) nos oferece importantes pistas para pensar a linguagem como um ato social, visto que essa emana do comportamento material dos seres humanos, logo de relações sociais estabelecidas entre eles (a linguagem da política, das leis, da moral etc.) e não uma realidade autônoma, existente por si só, nem tão pouco neutra. O ser humano, ao surgir no mundo, se depara com um conjunto de relações sociais já constituídas, na qual ele não decide se participará ou não delas. Assim como uma série de atitudes lhe serão impostas, o idioma que ele aprenderá a falar não é da sua escolha. Os valores, as ideias, os sentimentos, enfim a mentalidade já estará determinada independentemente da vontade do indivíduo. Sua interferência no mundo se dá a partir do momento em que passa a desenvolver sua consciência com a experiência (vivência). Portanto, sua consciência individual se forma socialmente a partir da imposição da cultura dominante (MARX e ENGELS, 1991; VIANA, 2009c). Porém, ainda assim é preciso questionar qual é a origem da linguagem e o que ela é.
A partir do momento em que a linguística surge como ciência autônoma, através da obra de Ferdinand Saussurre, passou-se a estudar internamente a linguagem. Daí por diante, seguindo Fiorin (2007), parte expressiva dos linguistas abandonaram a preocupação com as relações entre linguagem e sociedade, assim como as vinculações entre a linguagem e os seres que dela fazem uso. “Sua preocupação básica passou a ser a análise das relações internas entre os elementos linguísticos. Estabeleceu-se assim a chamada linguística estrutural” (FIORIN, 2007, p. 05).  Essa teve seu momento de apogeu e declínio, influenciou diversos pensadores nas últimas décadas e foi tomada como “ciência-piloto” por alguns, porém, nos últimos anos sofreu duras críticas de diversas outras correntes (sociolinguística, psicologia da linguagem, a análise do discurso etc.), que passaram a apresenta-la como sendo ideológica em seu conjunto, uma linguística burguesa.
Rousseau, em sua obra Ensaio sobre a origem das línguas (1987), apresentou uma explicação confusa e limitada sobre a origem da linguagem. Para ele, a linguagem não tem origem nas necessidades e na razão, mas sim (sem argumentos que comprovem) na moralidade e na paixão: “não se começou raciocinando, mas sentindo [...] todas as paixões aproximam os homens, que a necessidade de procurar viver força a separarem-se. Não é a fome ou a sede, mas o amor, o ódio, a piedade, a cólera, que lhes arrancaram as primeiras vozes” (ROUSSEAU, 1987, p. 164). Apesar da tese insustentável de que os sentimentos – apresentados por ele de maneira metafísica – são a origem da linguagem, Rousseau já apontava aquilo que na contemporaneidade é aceito por muitos: a origem social da linguagem. No fundo, a origem da linguagem é tanto afetiva quanto material, e as duas comprovam seu caráter social. A existência humana só foi possível graças à associação e essa necessitou, sem sombra de dúvidas, da linguagem para se articular e agir em conjunto, como forma de garantir a sobrevivência coletiva.
Então de que maneira, a partir de agora, definir a linguagem? Sapir (1980) e Viana (2007c) apresentam uma definição semelhante de linguagem, na qual estamos de acordo. Para eles, a linguagem equivale a um conjunto de signos[6] (sonoros, gráficos, gestuais) criados e utilizados pelos seres humanos como meios capazes de possibilitarem a comunicação de ideias entre eles. Desse modo, a linguagem se estabelece através das relações sociais.
A linguagem é tão velha quanto a consciência; ela é consciência prática, tal como existe para outros homens, e por essa razão está começando realmente a existir para mim também pessoalmente; pois a linguagem, assim como a consciência, só brota da necessidade, da exigência, do intercâmbio com outros homens. Onde há um relacionamento, ela existe para mim: o animal não tem “relações” com coisa alguma, nem as pode ter (MARX apud FROMM, 1975, p. 100 – negritos nossos).
A linguagem
está submetida ao processo social, possuindo, portanto, a mesma dinâmica, historicidade e singularidade da sociedade onde ela emerge. Assim, linguagem, tal como coloca Fromm (1979), está intimamente ligada à sociedade na qual ela emerge, sendo que existe uma sinonímia entre linguagem e sociedade. A sociedade produz uma linguagem adequada a ela, com um léxico, uma semântica, uma gramática etc. que é específica e socialmente organizada (VIANA, 2007c, p. 19).
Nas sociedades de classes, nas quais as ideias dominantes são as ideias da classe dominante, expressão dos seus interesses de classe e a serviço da manutenção das relações de exploração e da consciência coisificada, é de se esperar que a linguagem também esteja perpassada por tais interesses e pela luta de classes que deriva deles. Coube inicialmente a Bakhtin (2010) desenvolver a tese segundo a qual a linguagem é o ringue no qual se confrontam os valores sociais antagônicos. Na introdução da obra de Bakhtin, Marxismo e filosofia da linguagem (2010), Yaguello apresenta a principal tese desse autor:
se a fala é o motor das transformações linguísticas, ela não concerne os indivíduos; com efeito, a palavra é a arena onde se confrontam os valores sociais contraditórios; os conflitos da língua refletem os conflitos de classes no interior mesmo do sistema: comunidade semiótica e classe social não se recobrem. A comunicação verbal, inseparável das outras formas de comunicação, implica conflitos, relações de dominação e de resistência, adaptação ou resistência à hierarquia, utilização da língua pela classe dominante para reforçar seu poder, etc. Na medida em que às diferenças de classe correspondem diferenças de registro ou mesmo de sistema (assim, a língua sagrada dos padres, o “terrorismo verbal” da classe culta, etc.), esta relação fica mais evidente (YAGUELLO, 2010, p. 14).
A preocupação central de Bakhtin (2010) nessa discussão vincula-se à questão de saber como a “infra-estrutura” de determinada sociedade determina seu signo (“superestrutura”) e como o signo reflete e refrata a realidade em transformação.  Em outras palavras, como o modo de produção determina a linguagem enquanto uma forma de regularização das relações sociais apropriadas para esse modo de produção: sociedade capitalista, linguagem capitalista. No entanto, Bakhtin enfatiza que o signo também pode refratar a linguagem dominante, ou seja, pode constituir-se em um elemento de resistência à essa linguagem e, consequentemente à sociedade que lhe dá fundamento:
na realidade, todo signo ideológico vivo tem, como Jano (deus romano das mutações e transições), duas faces (uma voltada para frente e outra para trás). Toda crítica viva pode tornar-se elogio, toda verdade viva não pode deixar de parecer para alguns a maior das mentiras. Esta dialética interna do signo não se revela inteiramente a não ser nas épocas de crise social e de comoção revolucionária. Nas condições habituais da vida social, esta contradição oculta em todo signo ideológico não se mostra à descoberta porque, na ideologia dominante estabelecida, o signo ideológico é sempre um pouco reacionário e tenta, por assim dizer, estabilizar o estágio anterior da corrente dialética da evolução social e valorizar a verdade de ontem como válida hoje em dia. Donde o caráter refratário e deformador do signo ideológico nos limites da ideologia dominante (BACKHTIN, 2010, p. 48 – negritos e parênteses nossos).
Nessa passagem, Bakhtin demonstra que a linguagem é perpassada pela luta de classes e essa gira em torno dos signos utilizados na comunicação humana, pois é do interesse da burguesia impor determinados signos e evitar o desenvolvimento de outros, objetivando emperrar o livre avanço da consciência para além das fronteiras do capital. Essa busca, nem sempre intencional, pretende impor a ideologia burguesa, seus valores, concepções e mentalidade. No entanto, há um processo de resistência, levado a cabo pelas classes exploradas, com o intuito de expressar uma linguagem diferenciada. Contudo, tal resistência se apresenta mais nitidamente apenas em períodos de radicalidade e avanço da luta proletária e/ou de outras classes sociais exploradas e desprivilegiadas (BAKHTIN, 2010). Apreendemos, por conseguinte, que embora existam enormes obstáculos para o desenvolvimento de uma consciência e mentalidade contrária à burguesa, existem também brechas que permitem a transformação da linguagem, pois “apesar da língua-padrão (ou “culta”) ser imposta socialmente pelo estado e instituições auxiliares, especialmente a escola, existe uma língua diferenciada, chamada linguagem coloquial (ou popular) que é muitas vezes vista com preconceito” (VIANA, 2007c, p. 20). 
A sociedade capitalista possui uma mentalidade e ideologia dominante, fundada no poder da classe burguesa. É essa classe que, através do auxílio de diversas outras classes sociais (burocracia, intelectualidade etc.), produz uma atribuição de sentido às palavras e a torna dominante. No entanto, outras classes sociais, no enfrentamento contra a classe dominante, tendem a atribuir outros sentidos às palavras, um sentido a partir da perspectiva das classes exploradas, uma ressignificação da linguagem conforme indica a tese bakhtiniana da “plurivalência do signo”. Deste modo, a palavra
é o lugar privilegiado para a manifestação da ideologia; retrata as diferentes formas de significar a realidade, segundo vozes e pontos de vista daqueles que a empregam. Dialógica por natureza, a palavra se transforma em arena de luta de vozes que, situadas em diferentes posições, querem ser ouvidas por outras vozes (BRANDÃO, 2012, p. 09).
Uma cena do documentário The Take – occupy, resist, produce (AVI e KLEIN, 2004) fornece uma demonstração clara de como classes sociais distintas significam a mesma realidade de forma também distinta. Em uma entrevista durante o processo de ocupação e tomada da fábrica Cerâmica Zanon, na Argentina (outubro de 2001), um operário ao ser questionado pelo produtor do filme, se a ocupação e tomada de uma fábrica não equivalia a um roubo, respondeu: “não, existe outra palavra para designar isso, chama-se expropriação, é por aí que entendemos”. Essa reinterpretação da ocupação e tomada da fábrica demonstra um elevado avanço da consciência operária, pois o termo expropriar, nesse caso, aponta para a restituição da posse aos seus verdadeiros proprietários: os produtores. Nesse sentido, enquanto a classe burguesa utiliza a palavra roubo para explicar determinada realidade, a classe operária, ao buscar reinterpretar a realidade, a partir da sua perspectiva, é coagida a utilizar outra linguagem, outras palavras. Deste modo, a luta contra a classe dominante e seus interesses exige uma linguagem não dominante, pois “o ponto de vista do proletariado se caracteriza discursivamente por tomadas de posição a favor de certas palavras, formulações, expressões etc., contra outras palavras, formulações ou expressões, exatamente como uma luta pela produção dos conhecimentos” (PÊCHEUX, 2009).
A compreensão sobre o caráter social da linguagem, e da luta de classes que a atravessa, facilita a compreensão da mensagem que a linguagem veicula. E com essa compreensão podemos, a partir de agora, focar nossa análise na relação entre discurso e poder. O conceito de linguagem não deve ser confundido com o de discurso, pois o primeiro é bastante amplo, uma vez que faz referência ao uso de todos os recursos simbólicos existentes em determinada sociedade para efetivar a comunicação social. Além disso, a linguagem é marcada pela polissemia.
De acordo com Viana (2007c), existem basicamente três razões para que discurso e linguagem sejam definidos de forma distinta: a) enquanto a linguagem é fundamentalmente um meio de expressão, o discurso é a própria expressão. Portanto, a linguagem é um meio de manifestação que pode comportar diversos discursos; b) Ao contrário da linguagem, o discurso é unissêmico, isto é, deve possuir uma coerência semântica. Na linguagem, um termo ou palavra pode possuir inúmeros significados (por exemplo, a palavra economia), já no discurso ele possui um significado único que pode conviver com outros significados externos ao discurso. Nesse sentido, o discurso é composto por seus elementos internos (estrutura) e por seus elementos auxiliares (conjuntura). Portanto, um discurso é unissêmico em sua estrutura, todavia pode ser polissêmico na sua conjuntura; c) Por fim, podemos afirmar que enquanto na linguagem predomina a heterogeneidade e a polissemia, no discurso só há a unissemia em sua estrutura. Dessa maneira, o discurso é uma forma particular de manifestação da linguagem e é da sua particularidade que se extrai sua definição e distinção.
Segundo as análises introdutórias de Helena Brandão (2012) e de Eni Orlandi (2012) sobre a análise do discurso, a abertura de um espaço para o ingresso no campo dos estudos linguísticos, daquilo que mais tarde veio a se chamar discurso, foi realizada pelos estudos dos formalistas russos (Bakhtin, Voloshinov, Medvedev) nos anos 1920 e 1930. Foi nos anos 1950 e 1960 que a análise do discurso se constituiu como disciplina, principalmente, com a obra de Harris – Discourse analysis, 1952 –apresentando a possibilidade das análises ultrapassarem o confinamento no qual as frases se encontravam, estendendo procedimentos da linguística distribucional americana aos enunciados, denominados de discursos. As contribuições de Jakobson e Benveniste sobre a enunciação também foram decisivas na constituição dessa nova disciplina. Uma das poucas e primordiais definições de discurso foi fornecida por Émile Benveniste: “deve se entender por discurso em sua extensão mais ampla: toda enunciação que pressupõe um locutor e um ouvinte e, no primeiro, a intenção de influenciar o outro de algum modo” (apud Viana, 2007c). Essa tentativa de definir discurso nos parece pouco frutífera, visto que ela se fundamenta em generalizações grosseiras, pois a interlocução é um traço de toda a comunicação humana e não apenas de uma modalidade específica de sua manifestação, como é o discurso. Da mesma forma, a persuasão é um traço de determinados discursos (religioso, político, científico etc.) e não de todos os discursos (VIANA, 2007c).
No fundo, encontramos pouquíssimas definições para o termo discurso. Mesmo o Dicionário de análise do discurso (2004), organizados por Patrick Charaudeau e Dominique Maingueneau, não apresenta uma definição clara de discurso. Esse se contenta em apresentar as formas de discurso (forma de ação, interativo, contextualizado, assumido etc.), o que ele realiza, sem necessariamente defini-lo.
Os trabalhos iniciais no campo da análise do discurso, mencionados acima, demarcariam duas das principais correntes teóricas da análise do discurso: a escola americana e a escola francesa. Nesse trabalho, nos contentaremos em dialogar apenas com a escola francesa, visto que a americana pouco avançou em relação à questão do discurso, apresentando-o como uma simples extensão da linguística. Nos anos 50 seu precursor, Harris, com seu método distribucional, conseguiu
livrar a análise do texto do seu viés conteudista mas, para faze-lo, reduz o texto a uma frase longa. Isto é, caracteriza sua prática teórica no interior do que chamamos isomorfismo: estende o mesmo método de análise de unidades menores (morfemas, frases) para unidades maiores (texto) e procede a uma análise linguística do texto como o faz na instância da frase, perdendo dele aquilo que ele tem de específico. Como sabemos, o texto não é apenas uma frase longa ou uma soma de frases. Ele é uma totalidade com sua qualidade particular, com sua natureza específica (ORLANDI, 2012, p. 18).
A chamada Escola Francesa de Análise do Discurso designou a corrente da análise do discurso predominante na França entre os anos 1960 e 1970. O conjunto de pesquisas que compuseram essa escola foi desenvolvido na segunda metade dos anos 1960 e se consagraria com a publicação do número 13 da Revista Langages, cujo título foi A análise do discurso, bem como com o lançamento da obra Análise automática do discurso, de Michel Pêcheux, no ano de 1969 (CHARAUDEAU e MAINGUENEAU, 2004). Pêcheux foi o autor mais expressivo dessa corrente teórica. No entanto, antes de apresentar sua concepção de discurso, é preciso, antes apresentar as sistematizações ideológicas de Foucault sobre o poder e o discurso, reconhecendo algumas de suas contribuições e apresentando os limites de sua concepção burguesa tanto de poder quanto de discurso. Isso se justifica pelo fato de Pêcheux ter sido influenciado por algumas categorias analíticas de Foucault, que posteriormente são revistas.
O conceito de formação discursiva é central na ideologia sistematizada por Foucault, porquanto, como um bom filósofo, esse autor abusa demasiadamente da metafísica em suas conceituações. Para ele,
no caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão e, no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas se pode definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações) diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva (FOUCAULT, 1987, p. 43).
Mais adiante, na mesma obra Arqueologia do saber (1987), ele reforça: “chamaremos de discurso um conjunto de enunciados, na medida em que se apoiem na mesma formação discursiva; ele não forma uma unidade retórica ou formal, indefinidamente repetível e cujo aparecimento ou utilização poderíamos assinalar na história” (FOUCAUT, 1987, p. 135). Portanto, o discurso “seria concebido, dessa forma, como uma família de enunciados pertencentes a uma mesma formação discursiva” (BRANDÃO, 2012, p. 33).
Essas passagens confirmam aquilo que está presente ao longo de muitas de suas obras, isto é, a concepção estruturalista, metafísica e ideológica de um intelectual conservador e, diga-se de passagem, que vinha estreitando seus laços com a burocracia e com os poderes institucionais do estado[7]. É interessante perceber que a metafísica, tal como a de diluir o discurso em uma fantasmagórica “formação discursiva”, de um “sujeito” abstrato que não pode ser identificado etc., está presente em diversas obras de Foucault desse período. Sua concepção sobre o intelectual específico e intelectual universal é, como em toda metafísica, destituída de concreticidade[8], assim como sua discussão sobre o poder[9] (FOUCAULT, 2012).
Como bem constatou Baudrillard em sua obra Esquecer Foucault (1984): a metafísica do poder de Foucault nada mais é do que um discurso do poder. O vínculo que esse intelectual passou a ter com a burocracia estatal, a partir da segunda metade dos anos 1960, aliado com as teses ideológicas que ele passa a produzir, compõe parte da ofensiva burguesa expressa no plano intelectual/cultural e que caracteriza a transição do regime de acumulação conjugado para o regime de acumulação integral, cumprindo um papel importante na manutenção da hegemonia burguesa. É por isso que em suas produções ideológicas sobre intelectuais, o poder, o discurso etc. as classes sociais concretas desaparecem, assim como suas contradições e a luta de classes.
Pêcheux buscou elaborar as bases de uma teoria materialista do discurso através de uma dupla perspectiva. Para ele, a semântica não constitui parte da linguística como a fonologia e a morfologia, na verdade ela é para a linguística “o ponto nodal das contradições que atravessam e organizam esta disciplina sob a forma de tendência, direções de pesquisa, escolas linguísticas etc.” (BRANDÃO, 2012, p. 39); é exatamente nesse ponto nodal expresso pela semântica que a linguística circunscreve a filosofia e outras ciências sociais ou o materialismo histórico. Para esse autor, a interferência da perspectiva materialista nos domínios da linguística apresentaria uma série de questões em relação ao seu objeto e sobre sua relação com outros domínios científicos (ciências sociais em geral). Alguns mecanismos linguísticos irão compor, segundo o autor, uma área de articulação da linguística com a “teoria histórica dos processos ideológicos e científicos” (BRANDÃO, 2012). Para Pêcheux,
 sistema da língua é, de fato, o mesmo para o materialista e para o idealista, para o revolucionário e para o reacionário, para aquele que dispõe de um conhecimento dado e para aquele que não dispõe desse conhecimento. Entretanto, não pode concluir, a partir disso, que esses diversos personagens tenham o mesmo discurso: a língua se apresenta, assim, como a base comum de processos discursivos diferenciados, que está compreendido nela na medida em que, como mostramos mais acima, os processos ideológicos simulam os processos científicos (PÊCHEUX, 2009, p. 81).
Nessa passagem, Pêcheux realiza uma separação abstrata entre língua e discurso que acaba por reproduzir a dicotomia de Saussurre (1995) entre língua (estrutura formal invariante) e a fala (manifestação concreta da língua). Dessa forma, “o discurso estaria no segundo caso, o que demonstra que Pêcheux não percebeu que o primeiro caso só existe na concepção ideológica de Saussurre e nunca na realidade concreta” (VIANA, 2007c, p. 27). Portanto, tanto a concepção de Foucault quanto a de Pêcheux pecam por sua abstração metafísica. No primeiro pela influência do estruturalismo e, no segundo, pela influência do pseudomarxismo estruturalista. Por esse motivo, tais concepções são insuficientes para percebermos a relação concreta entres seres humanos concretos, divididos em classes sociais, e seus discursos, os interesses que eles expressam etc. Nesse caso, nos resta buscar uma concepção dialética de discurso.
Essa concepção dialética do discurso nós encontramos na obra Linguagem, discurso e poder – ensaios sobre linguagem e sociedade, de Nildo Viana (2007c), e, portanto, é essa concepção que fundamentará nosso trabalho. Nessa obra, o discurso é definido como
uma manifestação concreta e delimitada da linguagem. As suas partes constitutivas são a estrutura e a conjuntura e o caráter de sua estrutura é unissêmico. Isto quer dizer que o discurso é algo concreto e delimitado, ou seja, é sempre o discurso de um autor, de uma escola, de um grupo social, etc., que possui uma estrutura unissêmcia e é uma totalidade. Assim, o discurso é uma manifestação particular, específica, concreta da linguagem que possui uma estrutura unissêmica, pois um todo coerente e organizado, embora o nível da consciência e organização varie dependendo do discurso. A coerência e organização dependem de quem profere o discurso (VIANA, 2007c, p. 27-28).

Ao contrário das concepções fetichistas da linguagem e das abstrações metafísicas de discurso, tal como a “formação discursiva” (FOUCAULT, 1987; PÊCHEUX, 2009), aqui o discurso é apresentado como uma manifestação concreta da linguagem do seu produtor, logo é sempre o discurso de alguém, de quem o profere (indivíduo, grupo social, instituição, classes sociais etc.). Se, como afirmou Marx e Engels (1991), “a consciência jamais pode ser outra coisa do que o ser consciente”, então o discurso só pode ser a manifestação, por meio da linguagem, da consciência desse ser consciente, que se expressa a partir da posição que ocupa na divisão social do trabalho, a partir da consciência que possui no interior dessa divisão, logo o discurso é um fragmento de uma consciência que para “descobrir seu processo de produção é preciso compreender o seu produtor” (VIANA, 2007c).
Os discursos são formados em determinados contextos sociais e culturais nos quais seus produtores estão inseridos e dependem da posição na qual os mesmos se encontram diante desse contexto, seus valores, interesses e perspectiva de classe. O discurso científico, por exemplo, vincula-se à ascensão do modo de produção capitalista, que vem acompanhado de um gigantesco desenvolvimento das forças produtivas, de uma maior necessidade de controlar o meio ambiente para maximizar os lucros etc. Nesse contexto nascem as ciências naturais (física, química, matemática, biologia etc.) e seus discursos. Porém, a sociedade capitalista não brota do nada, mas sim das ruínas do modo de produção feudal que, por sua vez, foi resultado da luta de classes, inclusive no campo cultural. Nesse sentido, o discurso científico não nasceu da teologia (expressão cultural dominante no feudalismo), mas sim da luta de classes no campo cultural, no qual o renascimento e, posteriormente, o iluminismo foram seus resultados essenciais:
o combate entre burguesia e nobreza feudal forjou as armas culturais que a primeira utilizaria para combater a segunda e seu próprio discurso. Estas armas foram retiradas da sociedade escravista que havia criado a filosofia [...] O renascimento e o iluminismo produziram o contexto cultural necessário para a formação da ciência [...] O contexto social e o contexto cultural forma as condições de possibilidade de formação de um discurso. Mas tanto um quanto o outro são formas de expressão da luta de classes e isto significa que as condições de possibilidade de um discurso estão indissoluvelmente ligadas ao desenvolvimento histórico da luta de classes e cada discurso corresponde ao interesse de uma ou outra classe em luta (VIANA, 2007c, p. 30 – negritos nossos).
O discurso é produto das relações sociais e essas são relações entre as classes sociais, logo o discurso é sempre o discurso de alguém, o discurso de uma classe social. As determinações do discurso, assim como de toda realidade social, são múltiplas, apesar disso sua determinação fundamental é o contexto social e cultural no qual ele emerge. Dessa forma, coexistem diversos discursos de indivíduos, grupos e classes sociais diversas. Eles são compostos pela estrutura e conjuntura e essas possuem nos termos, palavras, noções e conceitos suas unidades constitutivas. Em sua estrutura ocorre uma articulação entre os termos e em sua conjuntura os termos podem se encontrar desarticulados. Enquanto a estrutura do discurso é unissêmica, a conjuntura é polissêmica, podendo ou não ser coerente com sua estrutura. A depender do grau de articulação e organização de um discurso, ou melhor, do seu produtor, podem predominar a estrutura ou a conjuntura.
Enquanto as palavras estruturantes de um discurso se encontram na sua articulação interna, seus sentidos conjunturais remetem ao papel que desempenham em sua totalidade. A realização de um estudo semântico com vistas a compreender o significado das palavras exige que se remeta ao contexto discursivo na qual ela se encontra. Em síntese, para se compreender a unidade de um discurso é necessário compreender sua totalidade e vice-versa. O estudo das unidades do discurso remete à semântica e o estudo da totalidade (estrutura e conjuntura) do discurso remete à análise do discurso e, juntos, se complementam e oferecem ferramentas essências para o estudo da linguagem (comunicação, informação etc.).
É importante destacar, como faz Viana (2007c), que sendo o discurso estruturado em um contexto social e cultural atravessado pela luta de classes, seu estudo exige a compreensão de uma totalidade maior, ou seja, a totalidade da sociedade no qual ele é produzido e determinado, quer dizer a dinâmica da luta de classes na sociedade. Aqui temos um aspecto especial para a compreensão da relação entre discurso e poder, pois todo discurso decisivamente carrega em sua estrutura os valores e perspectivas do seu produtor e essa estrutura constitui seu conteúdo, já sua conjuntura é constituída pelos elementos da linguagem que auxiliam sua transmissão. Então, podemos concluir que a luta de classes existente no discurso é manifestação da dinâmica da luta de classes, que no capitalismo é marcada pela supremacia burguesa e se manifesta sob diversas formas.
A discussão realizada pelo freudomarxista Erich Fromm (1975), sobre o caráter social, proporciona uma análise interessantíssima a respeito de como esse caráter condiciona o comportamento social (pensamento e ação), levando os indivíduos a reproduzirem da forma mais adequada possível o funcionamento da sociedade; para isso é importante que os pensamentos e sentimentos passem por um filtro social com o objetivo de controlar e impedir o avanço da consciência para fora dos domínios capitalistas:
o caráter social, que faz as pessoas agirem e pensarem do ponto de vista do funcionamento adequado de sua sociedade, é apenas um elo entre a estrutura social e as ideias. O outro está no fato de que cada sociedade determina os pensamentos e sentimentos que poderão atingir o nível de consciência e os que terão de permanecer inconscientes. Tal como há um caráter social, há também um inconsciente social. Por inconsciente social entendemos as áreas de repressão comuns à maioria dos membros de uma sociedade; os elementos habitualmente reprimidos são aqueles de cujo conteúdo a sociedade não deve permitir que seus membros tenham consciência, para que possa, com suas contradições específicas, funcionar com êxito (FROMM, 1975, p. 86).
A existência do filtro social, ao qual Fromm (1975) faz referência nessa discussão, demonstra que nas sociedades classistas existe uma seleção daquilo que se pode ou não tornar-se consciente por parte dos indivíduos pertencentes a essas sociedades. Nesse sentido, o filtro social atua como um dispositivo que determina que tipo de discurso deva ser afirmado e que tipo deva ser negado, isto é, existe uma seleção e repressão do que pode ou não ser dito, um caráter coercitivo e repressivo da linguagem e do discurso. O autor aponta três elementos que, segundo ele, forma o filtro social: o sistema conceptual, a lógica e os tabus sociais.
Para que uma experiência se torne consciente é necessária que seja compreendida no interior de um sistema conceptual e categórico nos quais o indivíduo esta inserido, pois todo modo de vida desenvolve seu sistema de percepção (consciência) e esse “trabalha, por assim dizer, como um filtro socialmente condicionado: a experiência não pode atingir a consciência se não atravessar esse filtro [...] De modo geral, podemos dizer que raramente atinge a consciência a experiência para a qual a língua não dispõe palavras” (FROMM, 1975, p. 110). Outros elementos seletivos e repressivos da linguagem são formados pela sintaxe, gramática e etimologia das palavras. A lógica forma o segundo elemento que compõe o filtro, pois em toda sociedade existe uma lógica que comanda a consciência dos indivíduos e que é considerada natural e universal; fazendo com que o princípio da identificação predomine e, ao mesmo tempo, obscureça o princípio da contradição (VIANA, 2007c). O terceiro elemento do filtro social é fornecido pelo tabu social. Dentre os três elementos, Fromm destaca que esse é o mais importante, visto que os tabus sociais não permite que determinados sentimentos e ideias cheguem à consciência real e procura expulsá-los. Os tabus sociais tratam determinadas ideias como sendo perigosas, proibidas e impróprias. Por isso a repressão das mesmas deve ocorrer para evitar que a haja conscientização dos indivíduos. O processo de repressão e censura da consciência é algo concreto e cotidiano na sociedade capitalista. Está presente nas formas de discursos existentes e dificulta bastante a manifestação de um discurso alternativo ao dominante. Uma vez que o poder da classe dominante está presente em todas as instituições burguesas, percebe-se que essa domina e controla a produção discursiva na sociedade. 
Os Estudos Críticos do Discurso (VAN DIJK, 2015), com uma linguagem bem distinta da nossa, apresentam elementos consideráveis para a compreensão da relação discurso/poder na sociedade contemporânea. Por isso, vale a pena retomar algumas de suas contribuições. Nesse trabalho, ainda não será possível contestar o conjunto de termos utilizados por tais estudos, assim nos contentaremos em recorrer, em algumas ocasiões, às notas de rodapé e parênteses para apresentar os conceitos que achamos mais apropriado para esse ou aquele termo utilizado por esses estudos.
Em sua discussão sobre o controle do discurso e modos de reprodução discursiva, Van Dijk (2015) salienta que uma condição fundamental para a prática do controle social através do discurso está no controle do próprio discurso e na sua produção. Dito isto, pode-se questionar: quem pode discursar, o que, para quem e em quais situações? Quem tem acesso à produção discursiva e seus meios de reprodução? Onde são produzidos os discursos? 
As classes exploradas possuem infinitamente menores possibilidades de acessar a produção de discursos (escrita, fala) em quase todos os espaços sociais, principalmente porque os locus de produção dos discursos são controlados pela classe dominante, especialmente pela burguesia comunicacional que, juntamente, com as demais classes e grupos sociais que compõe o bloco dominante, monopolizam a produção comunicacional:
os grupos mais poderosos (bloco dominante) e seus membros controlam ou têm acesso a uma gama cada vez mais ampla e variada de papéis, gêneros, oportunidades e estilos de discurso. Eles controlam os diálogos formais com subordinados, presidem reuniões, promulgam ordens ou leis, escrevem (ou mandam escrever) vários tipos de relatório, livros, instruções, histórias e vários outros discursos dos meios de comunicação de massa (capital comunicacional). Não são apenas falantes ativos na maior parte das situações, mas tomam a inicitavia em encontros verbais ou nos discursos públicos, determinam o “tom” ou o estilo da escrita ou da fala, determinam seus assuntos e decidem quem será participante e quem será receptor de seus discursos. Deve-se ressaltar que o poder não apenas aparece “nos” ou “por meio dos” discursos, mas também que é relevante como força societal “por detrás” dos discursos. Nesse momento, a relação entre discurso e poder é próxima e constitui uma manifestação bastante direta do poder da classe, do grupo ou da instituição e da posição ou status relativos de seus membros (VAN DIJK, 2015, p. 44 – parênteses nossos).
A produção dos discursos jornalísticos é controlada pela burguesia comunicacional em nome dos interesses do bloco dominante, através do trabalho da intelectualidade e da burocracia que atua na produção dos discursos para o capital comunicacional. Tais indivíduos possuem uma relativa liberdade e, consequentemente, poder para decidir sobre os tipos e gêneros de discursos a serem veiculados, os estilos e formas de apresentação de determinados discursos sobre determinadas realidades sociais etc. O poder comunicacional detém o poder de influenciar a sociedade, determinando a agenda da discussão pública, a relevância dos tópicos, a quantidade e qualidade da informação, os valores destacados para o público etc. Ele, juntamente com o bloco dominante, é o produtor do conhecimento, dos padrões morais, do comportamento, das crenças, atitudes, normas e das ideologias. Nesse sentido, o poder comunicacional exerce o controle e a dominação social por meio da cultura.
O capital comunicacional, na sua forma jornalística impressa, exerce o controle do conhecimento através de diversas estratégias, tais como a seleção restritiva de assuntos, ocultação das informações que contrariam seus objetivos, através da reconstrução parcial das realidades sociais, políticas e econômicas. Tal processo é guiado por um sistema axiológico típico da profissão jornalística que define o que deve ou não ser notícia e como ser noticiado, direcionando o foco e o interesse das notícias para os membros das classes auxiliares, tal como a burocracia estatal e governamental que, principalmente em contextos de radicalização da luta de classes, tendem a monopolizar o discurso sobre a realidade, apresentando-o de forma unilateral, ocultando assim as verdadeiras razões das lutas sociais, das condições de vida dos que contestam a sociedade, bem como apresentando explicações metafísicas[10] para os problemas sociais, criminalizando os contestadores, construindo inimigos imaginários (guerrilheiros, terroristas, delinquentes, vândalos etc.) abusando de metáforas e expressões negativas e ameaçadoras (exército de ilegais, maré/onda de imigrantes, parasitas, violentos, duros) etc.


Referências:
AVI, Lewis e KLEIN, Naomi. The take – occupy, resist, produce. Canadá, 2004. 1 dvd de video (1:27:05 hs).
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2010.
BRANDÃO, Helena. Introdução à análise do discurso. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2012.
CHARAUDEAU, Patrick e MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004.
FIORIN, José Luiz. Linguagem e ideologia. São Paulo: Ática, 2007.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir – história da violência nas prisões. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.
____. Microfísica do poder. São Paulo: Graal, 2012.
____. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2012a.
FROMM, Erich. Meu encontro com Marx e Freud. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1975.
ÓRIO, Mateus. A ampliação da produção de bens de consumo e as mudanças nos processos de trabalho. Em: http://www.estudosdotrabalho.org/texto/gt5/a_ampliacao.pdf Acessado em 01/01/2016.
ORLANDI, Eni. Análise do discurso. Campinas, SP: Pontes editores, 2012.
PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2009.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ensaio sobre a origem das línguas. São Paulo: Abril cultural, 1987.
VAN DIIJK, Teun. Discurso e poder. São Paulo: Contexto, 2008.
VIANA, Nildo. Universo psíquico e reprodução do capital. Em: QUINET, Antônio et al. (orgs.). Psicanálise, capitalismo e cotidiano. Goiânia: Edições Germinal, 1996.
____. Para além da crítica dos meios de comunicação. Em: MARQUES, Edmilson et al (Orgs.). Indústria cultural e cultura mercantil. Rio de Janeiro: Corifeu, 2007c.
____. Os valores na sociedade moderna. Brasília: Thesaurus, 2007d.
___. Linguagem, discurso e poder – ensaios sobre linguagem e sociedade. Pará de Minas, MG: Virtual Books, 2009c.
____. As representações da violência no discurso jornalístico. Revista Comunicação e Política. Volume 31, número 02, 2013.
____. Foucault: os intelectuais e o poder. Em: BRAGA, Lisandro e MARQUES, Edmilson. Intelectualidade e luta de classes. São Carlos, SP: Pedro e João editores, 2013a.
____. As representações cotidianas e as correntes de opinião. Revista Espaço Livre. Volume 10, número 19, jan./jun./2015.
____. Blocos sociais e luta de classes. Revista Enfrentamento. Ano 10, número 17, jan./jul. 2015a.
YAGUELLO, Marina. Introdução da obra Marxismo e filosofia da linguagem. Em: BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2010.






[1] O termo perspectiva aqui aponta para a questão do ponto de vista, do modo de ver, isto é, existe o que é visto (sociedade capitalista) e sob que ponto de vista se vê (perspectiva burguesa e perspectiva proletária, fundamentalmente). Por isso, podemos falar de visão de classe, ponto de vista de classe, que “é perpassado por uma mentalidade e é facilitado e incentivado pelo processo histórico real, bem como pela posição que o indivíduo ocupa nessa sociedade. A posição que um indivíduo ocupa numa dada sociedade se refere à qual classe ele pertence ou a partir de qual perspectiva ele se coloca. Embora seja raro, é possível um indivíduo de uma classe partir da perspectiva de outra, o que não o livra da possibilidade de mesclar perspectivas diferentes, ameaçando, assim, no caso do proletariado, a possibilidade de uma visão correta da realidade em sua totalidade. A perspectiva do proletariado, então, é a perspectiva de uma classe social determinada e que expressa como ela vê a sociedade a partir de sua relação com ela. Essa perspectiva, segundo Marx, marcaria a unidade entre o que é visto e a forma como se vê. A perspectiva de Marx busca ser essa perspectiva de classe e é nesse sentido que se pode compreender sua obra” (VIANA, 2007, p. 74-75).
[2] Cf. (VIANA, 1996).
[3] As representações cotidianas são “expressão da vida cotidiana, a manifestação das atividades cotidianas dos indivíduos não apenas em seu repertório temático (determinado por uma forma concreta de sociabilidade) mas também em sua forma de expressão, marcada pela naturalização, simplificação e regularidade” (VIANA, 2008a, p. 113-114).
[4] “Um padrão é, de certa forma, uma configuração, uma forma. Um padrão dominante é aquele que possui uma supremacia sobre outros padrões. Um padrão dominante de valores é, então, um padrão de valores que possui supremacia sobre outros padrões de valores. Uma configuração é uma determinada forma que assume os valores dominantes, que são os valores da classe dominante. Os valores dominantes podem assumir diferentes configurações, mas conservam sempre os valores fundamentais correspondentes aos interesses da classe dominante. É por isso que a axiologia é uma determinada configuração dos valores dominantes” (VIANA, 2007d, p. 33).
[5] Sobre o bloco dominante e a ideia de blocos sociais, conferir nesse número da Revista Enfrentamento o artigo de Viana (2015a).
[6] Chamado de recursos simbólicos por Viana (2007c) e de sistema de símbolos por Sapir (1980).
[7] De acordo com Mandosio, em 1965 Foucault “integra o jurí da École Nationale d’Administration, viveiro da alta burocracia francesa, e participa (como membro de uma comissão) da reforma da Universidade lançada pelo ministro Christian Fouchet, que entrará em vigor em 1967 – ‘um dos grandes projetos do gaullismo e mais particularmente de Georges Pompidou, o ‘Primeiro Ministro’, lembra Didier Éribon, informando que ‘Foucault levou muito a sério sua participação no estabelecimento da reforma’. Chegam a lhe oferecer o posto de subdiretor de ensino superior no Ministério da Educação Nacional. Esta proposta, que ele havia aceitado, não chegou a lugar nenhum devido a uma campanha orquestrada contra ele por conta de suas preferências sexuais” (MANDOSIO, 2011, p. 41).
[8]  Viana sintetiza essa crítica afirmando que “a discussão de Foucault sobre os intelectuais e o poder apenas revela o vínculo deste intelectual com as relações de poder expressa em sua ideologia, o que apenas manifesta a relação concreta que outros já demonstraram (Mandosio, 2011). A ideia de um intelectual específico em substituição ao intelectual universal é apenas a forma contemporânea assumida por uma das formas da ideologia dominante no sentido de desmobilizar e retirar o compromisso que alguns intelectuais tinham com a luta proletária e pela emancipação humana. Porém, também tem o papel de legitimar e justificar um microrreformismo e a desarticulação das lutas sociais em geral. No fundo, ambas as coisas provocam uma tentativa de isolar o proletariado em sua luta pela transformação social, pois busca afastar os intelectuais e demais grupos explorados e oprimidos de uma luta mais geral e articulada, gerando a fragmentação, o isolamento, além de produzir ideologias que reforçam isso (e faz isto dizendo que está fazendo justamente o contrário). O Maio de 68 é o grande fantasma que essa ideologia busca esconjurar” (VIANA, 2013a, p. 58).
[9] Chega a beirar o cinismo a “coincidência” da discussão que Foucault realiza sobre o poder, sua definição apontando para o poder como um exercício no qual ninguém é seu titular, não se sabe quem o detém, ele é relação, logo não se encontra em um único local/instituição etc., com o mesmo período em que ele se aproximava e flertava com o do poder do estado, almejando o poder de suas instituições etc. O que pode ser interpretado como uma estratégia desse intelectual para se auto camuflar e ocultar seus vínculos com o poder, assim como o serviço seus serviços prestados a ele.
[10] Como exemplo de tais “explicações”, poderíamos citar as duas notícias veiculadas pelo Jornal Clarín (Buenos Aires, Argentina), sobre o fuzilamento de contestadores sociais, em dois episódios de repressão ao movimento piqueteiro. Tanto o fuzilamento de Tereza Rodriguéz em Neuquén (1997), quanto o fuzilamento de Darío Santillán e Maximiliano Kosteki na Grande Buenos Aires (2002), foram apresentados, com destaque na capa dos seus jornais, como de responsabilidade da crise social: “a crise já produziu uma morte” e, posteriormente, “a crise causou duas novas mortes”.

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

A Questão da Organização Revolucionária

"Na verdade, é preciso superar a concepção dogmática e não marxista de buscar ler todos os textos de Marx e todas as suas afirmações como se fossem "verdades reveladas". Muitos fazem isso descontextualizando tais afirmações ou cristalizando-as, transformando-as em dogmas. Assim, se Marx disse em algum trecho de sua obra que é preciso fazer aliança com a burguesia, a afirmação se transforma em algo inquestionável (além de ser descontextualizada, ou seja, pode ser uma afirmação sobre um período de revolução burguesa e se toma isso como um absoluto, e daí se aplica para a revolução proletária, o que é totalmente sem sentido). Em primeiro lugar, é necessário analisar o contexto histórico em que Marx fez determinadas afirmações. Outro problema é a coisificação de texto de Marx e outros autores. Algumas passagens em que ele aborda o processo de eleições são vistos com horror por algumas pessoas que pretendem fazer uma leitura libertária de Marx, o que é outro tipo de erro a ser evitado. A leitura do texto se torna um simples exercício de coisificação, pois não se contextualiza o que foi escrito, não se observa que o significado da palavra "eleições" não é o mesmo que possui hoje, e que mesmo se fosse, o processo eleitoral daquela época era bem diferente do atual, que a burocratização das organizações, formação dos partidos políticos, democracia representativa estava em seu início e que a visibilidade de seu caráter conservador não era tão evidente assim, etc. contra o dogmatismo, é preciso ressaltar que o marxismo não significa fidelidade a textos escritos, seja lá de quem for, e sim a manutenção do caráter crítico-revolucionário, ou seja, como expressão teórica do movimento revolucionário do proletariado. Contra a coisificação dos textos (de Marx ou qualquer outro), é preciso resgatar o método dialético como recurso heurístico para compreender que um determinado texto é algo concreto, e portanto, "síntese de múltiplas determinações", é um produto histórico e social e que só assim pode ser realmente compreendido".

Nildo Viana - A Questão da Organização Revolucionária.